A infância é algo que só se tem quando se perde, porque as crianças estão perto de mais da infância para se aperceberem dela. Como em outras poesias, na minha infância - a palavra 'infância' e a ideia da infância mais do que a concreta memória de uma infância - é, julgo eu, a melancolia da 'primeiridão', de um tempo mítico em que olhámos o mundo e a nós próprios pela primeira vez, com olhos inocentes de palavras e de memória, isto é, 'não embaciados de nenhuma palavra/e nenhuma lembrança'. Não é a inocência da criança, que é uma inocência inocente, mas uma nietzchiana 'segunda e mais perigosa inocência', uma inocência que se sabe inocente, ou então apenas uma vontade de inocência. Neste último sentido, talvez haja na minha literatura para crianças -nunca pensei muito nisso- algo como uma tenativa não de recuperação, mas de vivência segunda, ou tosco sucedâneo, dessa inocência, e muito em particular da inocência linguística, que é a que mais me interessa.
Manuel Antónia Pina in Ípsilon 17 junho 2011